sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Combatendo os bárbaros, entrevista com Tzvetan Todorov

Do site Carta Maior

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17169


Tzvetan Todorov é um humanista à moda antiga, interessado no amplo espectro do conhecimento humano entendido como um caminho para a integridade e o saber. Linguista, filósofo, historiador, crítico literário, interessado tanto na semiótica como nas fraturas do século XX, este homem nascido na Bulgária e emigrado a Paris aos 24 anos, autor de livros fundamentais em praticamente todos os terrenos pelos quais incursionou, é um impenitente devoto da clareza do pensamento como arma contra a intolerância, a incompreensão e o totalitarismo em todas as suas formas. De passagem por Buenos Aires, convidado pela Fundação Osde para fazer algumas palestras, Todorov concedeu entrevista a Martín Granovsky, do Página/12. Na conversa, entre outras coisas, aponta as raízes fundamentalistas do ultraliberalismo e do populismo conservador que vem crescendo na Europa e nos EUA.
Martín Granovsky - Página/12
Data: 07/11/2010
Publicado originalmente no Página/12


Ele é alto, grisalho, tem olhos curiosos e um aperto de mão forte. Seu francês é perfeito. Tzvetan Todorov nasceu na Bulgária em 1939, mas vive em Paris desde 1963. Foi para a França para ficar um ano e por lá ficou. Estudou com Roland Barthes. Escreveu, entre outros livros, Teoria dos Gêneros Literários, Os Aventureiros do Absoluto, A Conquista da América e A Experiência Totalitária. Veio fazer conferências na Argentina e aceitou conversar com Radar (suplemento do jornal Página/12). A entrevista ocorreu na manhã de quarta-feira, quando já se sabia que os extremistas do Tea Party tinham sido o coração da vitória republicana nos Estados Unidos.

Você escreveu que o ultraliberalismo é uma forma fundamentalista

Sim, eu defendo isso.

Eu perguntava sobre a força do movimento Tea Party nos Estados Unidos.

Bom, na Europa conhecemos o que é o populismo.

Na América Latina também, mas suspeito que o termo é usado para nomear coisas distintas. Aqui a palavra é utilizada para sintetizar – ou criticar, dependendo do caso – experiências de centroesquerda com partidos fracos e líderes fortes.

Eu sei. Por isso me refiro ao caso europeu, que é diferente. Na Europa, é cada vez mais decisivo o voto populista de extrema direita. Um voto que cresce porque tem êxito em focalizar o inimigo de cada povo no estrangeiro diferente.

Agora o grande tema na França é a expulsão dos ciganos para a Romênia. Você se refere a isso?

É um tema grave, mas não é o ponto central na estigmatização. Em geral, a focalização sobre o estrangeiro que mencionava se refere ao diferente que, com frequência aliás, professa a fé islâmica. E isso influi em todos os governos.

Mas a extrema direita populista a que você se refere não chegou ao governo.

Sim, mas a direita de sempre, a direita a que estamos habituados e conhecemos bem, não pode governar se não se apóia na extrema direita. O poder necessita desse apoio.

Na Suécia, os conservadores ganharam mas, pela primeira vez, a extrema direita teve 10% dos votos e ganhou representação parlamentar.

Na Dinamarca e na Holanda a situação é ainda pior. Nesses dois países a questão do apoio da extrema direita à direita tradicional não é somente social, o que por si já é um problema grave, mas também de conformação de maiorias parlamentares. Os conservadores da Dinamarca e da Holanda precisam do voto da extrema direita no Parlamento. Por isso, os governos de direita aceitam muitas posições da extrema direita.

E na Itália?

Ocorre algo parecido com a Liga do Norte, que também tem uma posição ativa contra o estrangeiro diferente e pior ainda se ele tiver alguma relação com o Islã. A Liga do Norte está no governo associada com Silvio Berlusconi.

Por que você assinala uma diferença em relação à situação na França?

Porque tem outros matizes. Nicolas Sarcozy adota frequentemente temas e obsessões da extrema direita. Mas não exclusivamente dela. É um político pragmático preocupado sobretudo em conservar-se no poder. Assim, como coloca hoje a questão dos ciganos, no início de seu mandato adotou inclusive alguns temas da esquerda.

O movimento Tea Party nos Estados Unidos também se inscreve nessas correntes que você identifica na Europa?

Nos Estados Unidos, sobretudo em meio à crise, há um movimento contra os imigrantes. Mas esse não é o tema fundamental do Tea Party. Como a economia vai muito mal, a crítica se dirige ao governo de Barack Obama e tem raízes próprias. Nos Estados Unidos há uma espécie de filosofia de vida ultraindividualista. Essa filosofia diz que o ser humano é responsável pelo destino de sua vida. Mas essa filosofia de vida agrega a idéia segundo a qual o êxito econômico é uma medida suficiente para medir uma vida. Uma posição, evidentemente, fantasiosa.

Por que fantasiosa? Todos seus livros falam das responsabilidades do ser humano e do indivíduo.

Sim, mas não em estado de solidão. Eu estou profundamente convencido de que os seres humanos têm necessidade dos outros. Defender a liberdade ou o direito do indivíduo é um valor positivo. É preciso proteger os indivíduos da violência dos outros indivíduos e do Estado. Mas o indivíduo depende dos demais. A dimensão social do ser humano não pode – não deve – ser eliminada. A economia não pode ser um objetivo último, mas sim um meio.

Você critica a centralidade da noção de êxito econômico na concepção que definiu como “ultraindividualista”. Se o êxito fosse um valor a levar em conta, coisa que já seria discutível, qual seria sua concepção de êxito?

Eu tampouco me guio pelo êxito como objetivo da vida. Mas se, como ser humano, ao final de minha vida me perguntarem o que é o êxito, responderia que é ter vivido uma vida na qual vivi, amei, respeitei e fui amado pelos outros que amei e respeitei. Desculpe se uso tanto a palavra “vida” ou o verbo “viver”, mas prefiro não buscar sinônimos ou outras formas de dizê-lo. O êxito de uma vida inteira, de uma vida completa, é o êxito nas relações humanas. Uma vida sem amor terá sido desastrosa.

Li que você critica também as vidas baseadas somente no intelecto. No idioma argentino falaríamos de uma vida sem por o corpo.

Sim. E o mesmo se aplica a uma vida vivida tendo o êxito econômico como fim último. Ainda que seja redundante dizê-lo, seria uma vida que exclui a vida humana.

O Tea Party o impressiona?

Para além de fenômenos como os da Dinamarca e Holanda, e, de certo modo, da Itália, a tradição europeia é diferente. Na Europa, durante muitos anos todos os governos, de esquerda ou de direita, seguiram um modelo baseado no Estado de bem-estar social, o Welfare State. Esse modelo se fundamenta na solidariedade de toda a população, que se expressa, em última instância, em medidas adotadas a partir do Estado. Falo, por exemplo, da progressividade dos impostos. Quem ganha mais, paga mais. A redistribuição de renda é o princípio constitutivo do Estado. A tradição que aparece com o Tea Party alimenta-se, na origem, da conquista de um espaço vital. É um híbrido que combina a ideologia do xerife e o espaço do pregador.

O que o pregador agrega a essa ideologia?

A certeza de que, se eu sigo buscando meu espaço vital e o êxito, tendo um resultado econômico com fim último, tenho razão porque Deus me disse isso.

Estou predestinado como indivíduo.

Sim. Por isso há um caráter religioso de tipo fundamentalista muito importante. É importante destacar que nessa busca...

A busca parece uma batalha.

E é mesmo. E nessa batalha reaparecem inclusive temas de um passado recente. Obama é acusado até de instaurar o Gulag. Seria, para eles, um comunista.

Mas Obama não é sequer um radical, um homem de esquerda em termos norteamericanos.

Não, claro. É um político do mainstream, também no vocabulário norteamericano. Um político normal que está dentro do sistema político. Mas passa a ser um comunista, na crítica do Tea Party, porque parece querer regular a vida dos indivíduos. Leve em conta que, quando o Tea Party e os legisladores que recebem sua influência criticam a cobertura médica obrigatória votada por iniciativa de Obama este ano, acusam o presidente norteamericano de estar metendo-se em suas vidas. O raciocínio é assim: “Seu eu trabalhei e com meu esforço consegui um bom seguro e uma boa cobertura médica, que me permitirá uma boa aposentadoria privada, por que devo trabalhar para os que não trabalharam e, assim, não alcançaram o meu êxito?”. Falta a solidariedade elementar e isso me parece deplorável.

“Deplorável” é uma palavra forte.

Certamente. Essa forma de pensar procede, antropologicamente, de uma ignorância da necessidade do outro. E o paradoxal é que também tem escassas possibilidades de gerar as condições para o êxito econômico individual da classe média. Vou explicar melhor minha lógica de raciocínio para que não fique parecendo um simples slogan. A sociedade fica desequilibrada. Se fica desequilibrada, perde a força para combater a extensão do problema da droga ou do desemprego. Para solucionar temas dessa magnitude é necessário contar com toda a população. Não é possível fazê-lo apenas com uma parte dela. Como se vê, o Tea Party tem raízes em uma ideologia vigente em setores da sociedade norteamericana desde há muito tempo, mas seus efeitos concretos aparecem hoje. A leitura é que Obama e seu projeto se chocaram com o poder econômico.

E esse poder derrotou-o nestas eleições de metade de mandato.

As conclusões são impactantes. O homem mais poderoso do planeta, que é o presidente dos Estados Unidos, é impotente contra os interesses do grande capital. A mensagem é que as instituições não permitem sequer que um presidente legitimamente eleito adote uma política distinta, ainda que seja levemente distinta, daquela que eles defendem. A recente decisão da Corte Suprema que permite às empresas fazer contribuições à campanha eleitoral representa um freio aos políticos democráticos. Neste ambiente ultraliberal a democracia corre perigo.

Tanto assim?

Efetivamente. O poder se expressa por meio das eleições. Em 2008 se expressou votando em Obama. Mas na prática o povo não pode governar porque isso não é permitido pelos indivíduos mais poderosos. Se isso for verdade e se essa tendência se aprofundar, estaremos assistindo a uma mutação radical. Tão radical como a Revolução Francesa que, em 1789, passou de uma monarquia hereditária para uma assembleia eleita pelos cidadãos. Nós que respeitamos a integridade do indivíduo – e não falo agora, como você advertirá, do ultraindividualismo – devemos nos preocupar quando o domínio de alguns poucos políticos poderosos substitui a vontade dos indivíduos.

Como a substituem?

Usam, entre outras coisas, duas ferramentas. O lobby e o controle dos meios de comunicação. Um exemplo quase caricato ocorre é a Itália, onde Bersluconi pessoalmente é dono da maior cadeia de televisão privada e, como presidente do conselho de ministros, controla os demais sinais. Ao mesmo tempo promove um ultraliberalismo combinando o uso dos meios de comunicação mais poderosos com pressões sobre a Justiça. Por isso é essencial manter o pluralismo na imprensa. É preciso evitar que seja controlada por um pequeno grupo de indivíduos. De oligarcas, como se diz na Rússia. Na França, Sarkozy ocupou-se pessoalmente de que o aporte de capitais de que necessitava o jornal Le Monde não viesse de empresários que não eram simpáticos a ele. Nos Estados Unidos, muitas emissoras de rádio e canais de televisão como a Fox repetem dia e noite uma mensagem populista.

Populista?

Sim. Já sei o que vai me dizer. Sei que a palavra “populista” tem uma acepção diferente na Argentina. Refiro-me, por exemplo, às mensagens do líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen. Em que consiste seu populismo? No fato de que encontra fórmulas tão falsas como eficazes de chegar ao povo. Diz: “Na França, há três milhões de desempregados e três milhões de imigrantes. E eu vou lhes dizer como se resolve o problema: colocando pra fora os imigrantes”. Assim age o populismo ultraconservador. Se Obama aumenta impostos para os setores mais poderosos, dirão que que o aumento de impostos afeta a classe média e repetirão isso até a exaustão.

Mas não é só uma questão de propaganda, não? Ou, em todo caso, essa propaganda simplificadora se baseia no medo provocado pelo desemprego e a crise, ou pela falta de políticas mais incisivas, ao estilo de Franklin Delano Roosevelt em 1933.

E, além disso, a população não está bem informada e não costuma entrar em raciocínios teóricos complexos. A experiência cotidiana da França é que aumentam os preços e que, ao mesmo tempo, o chefe de governo fala bem. E um senhor Le Pen diz: “Os ciganos ficaram com o teu dinheiro”. Lembremos que, em 1933, Adolf Hitler foi eleito por sufrágio universal. O populismo, tal como descrevi, apela a um raciocínio simplificado, rápido, compreensível para todos. E digo isso não como anjo. Não vivemos em um mundo habitado por anjos. Tampouco por demônios, é claro. Eu me incluo nisso. Ou seja, gente que está informada e lê os jornais ou até os escreve. E incluo você também, se me permite.

Certamente. Qualquer explicação baseada na lógica anjo-demônio é de fanáticos. Professor, como jornalista e como leitor sempre me chamou atenção uma frase sua: que fazer-se entender, para um intelectual, é um tema ético. Acredito que a disse ironizando Jacques Lacan. Mas, para além de Lacan, por que disse “ético” e não “estético”?

Porque a ética se funda na relação com os demais seres humanos. Implica um respeito. E então não se deve usar meios indignos. A sedução está bem e se justifica quando se busca despertar a simpatia de um indivíduo. É preciso mostrar-se eloquente, simpático, apelar a todos os fogos de artifício de que se disponha. Isso vale para um homem, para uma mulher, para qualquer um. Mas no espaço público considero que praticar a demagogia populista é um tipo de discurso obscuro com aparência de profundidade significa transgredir um contrato.

Que contrato?

O que se estabelece entre interlocutores, entre pessoas. Por isso é um contrato ético.

Tradução: Katarina Peixoto

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