quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
De papa a papa
por Janio de Freitas
O Vaticano é a grande caixa-preta, a maior e mais duradoura de todos os tempos. Sua vida interior só pôde ser sondada, até hoje, por especulações, por combinação de mínimas certezas factuais com hipóteses à vontade dos autores.
Os antecedentes da renúncia de Bento 16 (grafia adotada pela Folha para o nome oficial Bento XVI) e seu próprio papado não prometem melhor destino informativo.
Minha curiosidade concentrou-se, há tempos, em um ponto mais modesto, e, ainda assim, não menos irrespondido. Bento 16 é reconhecido como intelectual de alto nível e, ainda, com talento político comprovado por seus mais de 50 anos bem-sucedidos nas lutas ferinas no Vaticano.
Como foi possível que não buscasse alguma fórmula doutrinária de convivência da igreja com os aspectos da modernidade avessos à doutrina católica? Sua fixação foi bater de frente, incitar a intolerância, fazer acusações graves, a exemplo da atribuição, aos usuários de camisinha, de maior disseminação da Aids.
Bento 16 não cuidou de proteger a doutrina do seu rebanho, argumento muito propalado. Antes preferiu fazer a igreja investir contra grande segmento desse rebanho, ansioso por maior compreensão, e contra todos os demais.
Um dos momentos grandiosos da face pacífica do século passado deu-se em 1962. Foi o Concílio Vaticano 2º (nome oficial: Vaticano II). Convocado pelo ex-cardeal de Veneza, Angelo Roncalli, apenas três meses depois de tornar-se em 1959 o papa João 23 (ou, como escolheu, João XXIII), o concílio foi por ele levado a fazer a igreja reconhecer-se como parte do mundo dos homens e a reconhecê-los todos, sem distinção de espécie alguma.
O milenar estigma mantido pela Igreja Católica contra os judeus, precursor não letal, mas socialmente venenoso, daquele que vicejaria na Alemanha, na Rússia e em tantos países mais, cedeu à conciliação não só com os judeus, mas com as outras igrejas católicas, com os protestantes em geral, com as crenças e ritos ditos “primitivos”, com os casos de Estado antirreligioso e com todo obscurantismo.
OBSCURO LATIM
O ecumenismo ganhou o mundo. Os católicos mesmos ganharam de volta a sua igreja, capazes de entender a missa e os seus ritos agora rezados em suas línguas, e não mais no obscuro latim. E com os celebrantes não mais de costas para os fiéis. A igreja reconhecia a humanidade. E os direitos humanos.
O teólogo Joseph Ratzinger foi um dos produziram, no Vaticano 2º, os documentos doutrinários inspirados pelo “papa Buono” e pelos cardeais que o acompanharam no “aggiornamento” -a atualização da Igreja Católica apesar da resistência, nas palavras de João 23, “dos que só veem no mundo moderno traição e ruína”. Referia-se aos “consumidos pelo fervor” mas “de escassa razão e ponderação”.
A ação de João 23 foi tão significativa que abriu uma crise no comunismo internacional: encabeçada pelos grandes PCs da França e da Itália, numerosa e expressiva corrente dos comunistas incorporou o espírito reformista do Concílio Vaticano 2º, exprimindo-o, por todo o mundo, inclusive em “best-sellers” como “Do Anátema ao Diálogo”, do filósofo comunista francês Roger Garaudy.
O Concílio Vaticano 2º fez seu cinquentenário no ano passado. A Igreja Católica, em especial o Vaticano, e, em particular, o papa Bento 16, não lhe dedicaram nenhuma celebração. Ah, mas não o esqueceram. Antes que o ano findasse, Bento 16 e a Cúria Romana restabeleceram o uso do latim –completaram o retrocesso feito pelo papado de João Paulo 2º e seu culto à personalidade.
*Publicado na Folha de São Paulo
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