Por Renato Guimarães,
do blog Mirante
Quando se fala num
golpe de Estado em andamento no Brasil, as pessoas de modo geral
pensam num modelo “clássico”, com deposição do presidente. É
assim que os golpistas preferem, claro. Vivemos hoje, entretanto, um
processo diverso de golpe de Estado, que tem a forma de esvaziamento
do Poder Executivo.
Na verdade, esse é um
processo que vem de há quase 30 anos, desde o final da ditadura
militar. O que há de novo hoje é que ele ganha ritmo acelerado.
Houve um tempo em que o
Executivo era o senhor dos poderes. Lembro um episódio que ilustra
bem isso. Em 1958, era eu jornalista em Última Hora, quando Samuel
Wainer me pôs num DC3 da FAB com destino a Brasília,às vésperas
da inauguração do Alvorada, para entrevistar o presidente
Kubitschek.
A entrevista ocorreu numa varanda do palácio, ao cair da noite, com o presidente acomodado numa poltrona, as pernas esticadas para descansar os pés na mesa baixa. Entre minhas perguntas, a certa altura soltei (cito de memória, mas quem tiver a coleção do jornal pode conferir):
A entrevista ocorreu numa varanda do palácio, ao cair da noite, com o presidente acomodado numa poltrona, as pernas esticadas para descansar os pés na mesa baixa. Entre minhas perguntas, a certa altura soltei (cito de memória, mas quem tiver a coleção do jornal pode conferir):
- Presidente, a maioria
da imprensa hostiliza a construção de Brasília, muitos bancos e
empresas de capital privado e grande número de funcionários do
Estado dizem que não virão para a nova capital. O que o senhor
pensa fazer quanto a isso?
Ele abriu o sorriso
largo que o caracterizava e respondeu:
- Não se preocupe, eu
trago o Banco do Brasil para cá e todo mundo vem atrás.
E assim aconteceu. O
Banco do Brasil comandava a economia e o presidente comandava o Banco
do Brasil, além de ter a caneta para nomear e demitir milhares de
dirigentes de cargos públicos. O presidente personificava o poder do
Estado.
É verdade que aquela
entrevista acontecia poucos anos depois do suicídio de Vargas, na
sequência de um processo de golpe de que participaram os comandos
militares. O Executivo era o poder maior, mas eventualmente, dentro
dele, os militares atropelavam o presidente. O próprio suicídio de
Vargas concorreu entretanto para neutralizar aquele golpe, suscitando
a ira popular e alentando as correntes militares mais sensíveis ao
sentimento democrático. Houve em 1955 a eleição de Kubitschek, em
seguida o contragolpe encabeçado pelo general Lott para
assegurar-lhe a posse, e até 1964 os brasileiros puderam respirar
num regime de respeito à Constituição.
A ditadura militar
favoreceu uma concentração ainda maior do poder no Executivo,
embora, principalmente nos primeiros anos, este tenha ficado mais
submisso ao governo dos Estados Unidos. Após a ditadura,
principalmente nos governos Collor e Cardoso, com a predominância da
política neoliberal do chamado “Consenso de Washington”, o Poder
Executivo foi progressivamente enquadrado pelo capital financeiro,
onde é franco o domínio de interesses imperialistas. Foi um
fenômeno que se deu aliás em escala mundial: buscava-se tornar
irrelevante o resultado de eleições, de modo a manter a estrutura
do poder em mãos de tecnocratas da confiança do capital
imperialista.
Nisso, foi importante no Brasil, em particular, a perda de substância do Ministério da Fazenda e do Banco do Brasil no comando da política monetária e cambial, paralelamente à instituição do Banco Central, cuja ação se descolou da autoridade do presidente da República. De órgão subordinado a um ministério, o Banco Central adquiriu de fato – não na lei – status de órgão autônomo, sobre o qual nem o presidente da República tinha ingerência. Não por acaso, nele se instalou, soberano, um brasileiro ex-funcionário do Banco de Boston nos Estados Unidos, ao qual esse expoente de Wall Street continuava a pagar gordo salário, a título de aposentadoria.
Com o processo
avassalador de privatizações que dilapidou o patrimônio do Estado
nos anos 1990, a economia do país passou a ser comandada diretamente
por interesses de poderosos grupos privados, entre os quais
predominam os estrangeiros, através do Banco Central e de agências
reguladoras sob influência do capital financeiro. Basicamente, o
país passou a trabalhar para pagar juros altos de dívida pública
aos bancos privados e pagar pelos danos pesados de desnacionalização
decorrentes de uma taxa de câmbio sobrevalorizada.
O governo Lula, em seu
segundo mandato, deu início a uma recuperação do poder perdido da
Presidência da República. No governo Dilma essa recuperação pôde
avançar de modo mais significativo, com a autoridade presidencial se
fazendo novamente valer sobre o Banco Central, para conseguir redução
na taxa de juros e melhoria para o país na política de câmbio.
Mas a direita volta
agora à carga para recuperar esse terreno que perdeu. Investe em uma
tentativa de golpe de Estado que tem por objetivo sempre esvaziar e
imobilizar o Poder Executivo, mas traz a novidade de fazer isso
através do debilitamento também do Poder Legislativo e da inflação
do Poder Judiciário, representado pelo STF, que ela tenta cooptar,
com apoio ostensivo e até agressivo da mídia empresarial
monopolista.
Já no julgamento do
processo 470, ao erigir-se em crítico das práticas de aliança
política vigentes, sob o argumento não provado – até porque o
Tribunal se desobrigou da exigência de prova para condenação –
de que foram usados expedientes criminosos, o STF exerceu
indiretamente coação sobre o Congresso, com o notório efeito de
embaraçar a possibilidade de alianças políticas para o Executivo
atual e a governabilidade do país. Agora, a pressão ganha em
escala, com o assalto ensaiado no Tribunal à prerrogativa
constitucional do Congresso de cassar mandatos de parlamentares.
O esforço da mídia
monopólica para alçar o STF à categoria de superpoder e alçar
determinado juiz à imagem de justiceiro implacável, herói e líder
da redenção nacional, é artifício capaz de nos levar a um golpe
reacionário de tipo fascista, embalado pelo moralismo pelo qual a
classe média costumeiramente se deixa atrair. Nunca será demais
lembrar que o próprio PCB, em sua fase mais estoica, embarcou em
campanha desse tipo, no segundo governo Vargas, até perceber seu
erro, com a súbita e dramática revelação que o país recebeu do
suicídio do presidente, e postar-se à frente da revolta popular
contra o golpe de Estado.
Faz parte da manobra
golpista de hoje degradar o sentimento político da população, para
torná-la indiferente à defesa das liberdades civis. A execração
pública pelo pela mídia mercantil, com benção do STF, de
combatentes da luta contra a ditadura como José Dirceu e José
Genoíno contribui para que se admita como natural e normal a tortura
como instrumento de política de Estado e a supressão dos direitos
democráticos.
Da mesma forma,
contribui para amortecer o sentimento democrático do país a
campanha para aviltar a imagem do partido e dos governantes eleitos
que ganharam legitimidade e prestígio por participarem ao lado dos
trabalhadores e do povo da luta contra a ditadura militar, se
associarem a conquistas sociais e à afirmação da soberania
nacional. Não é de estranhar, aliás, que isto ocorra por ação de
um Tribunal em que um dos juízes saiu recentemente a público em
defesa da ditadura militar, sem ser contestado por seus colegas.
Pouco a pouco, querem
criar no país um cenário no qual seja irrelevante quem é o
presidente da República. Ou no qual tirar do cargo o presidente seja
detalhe fácil, como foi há pouco no Paraguai. No qual a população
esteja preparada para uma longa noite de salazarismo obscurantista e
entreguista, com o país de novo entregue ao complexo de vira-lata de
que falava Nelson Rodrigues. Ou, se preferirem, para de novo o país
virar “um imenso Portugal”, como diz a canção de Chico Buarque,
já que Portugal parece outra vez entregar aos bancos as chaves de
seu governo e conformar-se com um destino de “austera, apagada e
vil tristeza”.
Mas isto é o que eles
querem. Lembrando Garrincha, é preciso perguntar se eles “já
conversaram com os russos”, se o povo brasileiro vai concordar.
Creio e espero que não.
fim
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