Nunca tivemos, no
Brasil e alhures, uma justiça perfeita. A esse respeito permanece
como paradigma da dúvida do julgamento político a condenação de
Sócrates. A acusação que lhe fizeram foi de impiedade, o que, no
léxico de então, mais do que hoje, significava heresia diante dos
deuses: Sócrates estaria pervertendo os jovens com seus
ensinamentos, tidos também como antidemocráticos. As lições de
Sócrates sempre foram da dúvida, da incessante busca do
conhecimento, mesmo que o conhecimento fosse, em sua inteligência,
inalcançável. Ele dizia saber que nada sabia.
Nesse pensamento
negativo radical, recriado e elaborado por Platão, estaria, em
ultima ratio – à qual não se atreveu Platão – a suprema
heresia de duvidar da existência dos deuses. Os deuses eram os
fiadores da democracia, e quando esse contrato com o mito, em que se
fundava a sociedade, rompeu-se, ao ser sua existência posta em
dúvida, Atenas perdeu o seu ponto de gravidade e entrou em
irrecorrível declínio político.
Não estamos em Atenas
daquele tempo emblemático, e seria, isso, sim, impiedosa heresia
comparar o julgamento atual do STF ao de Sócrates. Em certo aspecto,
no entanto, os dois episódios se semelham: o do espetáculo. Como
tudo em Atenas, o julgamento de Sócrates foi público, com 501
juízes. Os acusadores e Sócrates, em sua apologia, foram ouvidos
por uma assembléia numerosa, de acordo com os relatos, mas os que
acompanham a Ação 470 vão muito além: chegam a dezenas de
milhões.
A transparência é
salutar, mas não seria essa exposição demorada e ampla, vista pelo
outro lado da razão, contaminada pela vaidade de alguns magistrados
e, dela decorrente, pela influência de jurados estranhos e
ilegítimos, mediante os meios de comunicação?
Todos os condenados já
se encontravam, mesmo sem que se conhecessem devidamente os fatos,
julgados por apresentadores de programas de televisão e políticos,
sem falar nos que se identificavam como “cientistas políticos” e
“juristas”, iluminados pelos holofotes, que supriam de argumentos
interessados os mediadores das emissoras. Assim se desenvolveu um
julgamento paralelo, que antecipava votos e açulava os
telespectadores contra os réus. Por isso mesmo, e de acordo com
alguns observadores, também em outros aspectos foi um julgamento que
desprezou as cautelas da lei no que se refere ao direito de defesa
dos acusados.
Se isso realmente
ocorreu, abriu-se precedente perigoso, que poderá servir, no futuro,
contra qualquer um. Ainda que os acusados fossem realmente culpados,
a violação de alguns princípios, entre eles o da robustez das
provas, macula o processo e o julgamento. Como dizia Maquiavel,
“quando se violam as leis por uma boa causa, autoriza-se a sua
violação por uma causa qualquer”, ainda que nociva ao Estado.
O que os observadores
de bom senso temem é que o inconveniente espetáculo, em que se
transformou o julgamento da Ação 470, excite os golpistas de
sempre. Ainda que a sugestão não passe de tolice insana, há os que
pretendem aproveitar-se do julgamento para promover um processo
contra o presidente Lula e seu governo.
Se isso viesse a
ocorrer, os juízes do Supremo teriam que admitir novos processos
contra outros chefes de Estado, pelo menos no exame dos atos de
governo dos últimos vinte anos. Como diz o provérbio rural, o risco
que corre o pau, corre o machado.
A história nos mostra
– e 1964 é alguma coisa recente na vida nacional – que uma das
primeiras vítimas institucionais dos golpes é exatamente a
imprensa. O “Correio da Manhã”, que se excedeu no entusiasmo
conspiratório, e publicou o célebre editorial de primeira página
em favor da deposição de Jango pela força, sob o título de
“Basta, e Fora!”, foi o primeiro a se arrepender – tardiamente
– e o primeiro a ser sufocado pela arbitrariedade da Ditadura.
Os outros vieram
depois, amordaçados pela censura, e obrigados a beber do fel que
queriam que fosse servido aos competidores. Os açodados editores dos
jornais e diretores dos meios eletrônicos, como são as emissoras de
rádio e televisão, devem consultar seus arquivos e meditar essas
lições do passado.
Com todo o respeito
pelo STF e a sua autonomia republicana, não nos parece conveniente a
transmissão ao vivo dos julgamentos. Os juízes devem ser protegidos
pelos ritos da discrição. Seria ideal, também, para a
respeitabilidade da Justiça, que os juízes só recebessem as partes
e seus advogados em audiências regulares, das quais já participam
oficialmente os representantes do Ministério Público.
O ato de julgar, em
todas as suas fases, deve ser visto como alguma coisa sagrada. Essa
era a razão dos ainda mais antigos do que os gregos, que só
escolhiam os anciãos para a difícil missão de ministrar a justiça.
Os julgamentos não podem transformar-se em entretenimento ou em
competição oratória.
fim
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