terça-feira, 27 de setembro de 2011
Fui injusto com Miguel Nicolelis
por Lúcio de Castro
Cheguei de Macaíba como um disco quebrado. Samba de uma nota só. Bolero de Ravel, como João Saldanha se referia a tudo o que era repetitivo. Estava assim naqueles dias. Provavelmente insuportável. Só queria falar sobre Miguel Nicolelis. Quem passava na minha frente pagava o pedágio. Acho que todo mundo já passou por isso: um estado de empolgação que torna a pessoa repetitiva ao extremo. Mas tinha motivos de sobra. Passara três dias em Macaíba, no Rio Grande do Norte, tendo Nicolelis como cicerone, acompanhando o dia a dia dele no Instituto que criou, almoçando com aquele monstro sagrado em restaurantes de beira de estrada e acima de tudo vendo o milagre da transformação que se opera por lá.
E repetia para todo mundo desde o instante em que pisei de volta na minha São Sebastião do Rio de Janeiro: “conheci um gênio”. Bastava passar na minha frente que eu, ainda meio atônito, mandava: “conheci um gênio”. E em qualquer mesa, qualquer resenha, forçava o papo para falar de Nicolelis. E mandava: “conheci um gênio”. Essas recordações voltaram no sábado, vendo o “Histórias do Esporte”, onde Nicolelis era um dos personagens. Mas fui profundamente injusto com Miguel Nicolelis.
É óbvio que Miguel Nicolelis é um gênio. Essa é a face mais evidente e óbvia do neurocientista que impressionou a todos na Academia Sueca de Ciência, o homem cotado para o Nobel, o diretor do instituto de neuroengenharia da Universidade de Duke (EUA), o homem considerado como um dos 20 mais influentes do mundo, recebido por todos os presidentes americanos. Portanto, ir a Macaíba e voltar com essa constatação, é um brutal desperdício, ao qual submeti o ouvido de alguns amigos por alguns dias.
Nicolelis é muito mais do que isso. Chamá-lo apenas de “gênio” é reduzir a grandeza de um homem espetacular, um daqueles que ainda nos fazem acreditar na raça humana, a um aspecto apenas. Nicolelis é antes de qualquer coisa um humanista. Um sonhador, um brasileiro maior, um daqueles tipos raros onde teoria e prática se encontram de mangas arregaçadas para mudar o mundo, para quebrar séculos de tabus e preconceitos.
A profissão me deu alguns presentes e possibilidades muito além do que poderia sonhar. Momentos únicos. Mas entre eles, certamente estar naqueles dias com Miguel Nicolelis foi um dos maiores entre esses.
Desse homem que juntou sonho e prática cirurgicamente ouvi algumas coisas que não me esquecerei jamais. Definições de Brasil, esperanças, utopias construídas diariamente. Foi em Macaíba, 34ª colocada no IDH do Rio Grande do Norte (atenção: 34ª colocada no IDH do Rio Grande do Norte!) que Nicolelis resolveu botar de pé seu sonho, provar que se tiverem oportunidades, crianças paupérrimas podem ser cidadãos em plenitude, doutores, o que sonharem. Foi desse gênio da raça que ouvi as tais coisas que não me esquecerei. Que desafiam os pernósticos engravatados, colonizados que falam de seu país e de sua gente sem ter a mínima ideia do que estão falando.
“A filosofia central do projeto, há 6 anos atrás, era demonstrar que poderíamos descentralizar a produção de conhecimento de alto nível no Brasil, sair dos grandes centros, e vir pra um local onde nenhum cientista viria em sã consciência, e mostrar que o talento local e de outros, que voltaram, essa mescla, poderia gerar ciência do mais alto nível, e alem disso, usar essa ciência como agente de transformação social. Nós tínhamos que testar o modelo e é um grande experimento social, e 6 anos depois eu acho que estamos começando a chegar a um diagnostico, e ele comprova a hipótese, de que pode se fazer ciência de alto nível em qualquer lugar do Brasil, que o talento existe em qualquer lugar, é só as oportunidades estarem disponíveis, e haver um desejo político e dedicação ferrenha de oferecer essas oportunidade pra que o talento aflore. O que provamos era o óbvio: de que o talento humano é distribuído homogeneamente por todo o território nacional.”
“A primeira coisa que decidimos é que iríamos ter escola em que o primeiro mandamento é que teríamos escola onde elas seriam felizes, e o segundo mandamento é que se sentissem em ambiente onde fossem amadas. Esses dois mandamentos transformam a relação do aluno com a escola. No momento que ela entra e sabe que pode expressar seus receios, medos, e que alguém vai ampará-la, que não existe pergunta idiota, que alguém vai confortá-la, nesse momento, criança taxada de rebelde, problemática, ela se desveste dessa pecha, e vira o que ela é: criança! Na verdade, a criança problemática, rebelde, elas são crianças. Nós temos que achar soluções. O dilema é nosso, ela jamais deveria ser abandonada, expulsa. Provavelmente, o ato de rebeldia dela é um pedido de socorro, de apoio. O que descobrimos é que essa receita de felicidade, apoio, de amor incondicional, resolve qualquer problema de indisciplina, sem perder o rigor educacional. Não temos nesses dois anos caso de criança que deixou de vir por ser problemática. Nenhuma criança pra nós é problema, elas são soluções.”
“A maior constatação empírica como cientista, que observa e quer tirar alguma conclusão, é de quanto talento o Brasil tem, e quanto talento ta aí, a disposição a ser coletado, e de quanta maneira quanto talento o Brasil desperdiça porque essas crianças, tanto essas que fazem ciência desse prédio quanto da escola, tem muito a oferecer ao mundo. Eles chegam aqui olhando pro chão, chegam tímidas, não se expressam, não tem coragem, e em alguns meses começam a acreditar no seu talento, que permitem que elas hoje não olhem pro chão mais. Saber que quando se expressam, tão exercendo um direito, e tão contribuindo pra algo muito maior. Essa seria a maior contribuição do projeto: devolver a essas crianças o que jamais deveria ter sido tirado delas. Esse direito de participar”
Miguel Nicolelis é um desses brasileiros que nos fazem seguir com algum otimismo, mesmo diante de tantos obstáculos, Sarneys, Teixeiras, Cabrais...
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