Por Emir Sader
O Brasil não era um país feliz antes do golpe de 1964. Mas era um país que dava sequência a um ciclo longo de crescimento econômico, impulsionado por Getúlio, como reação à crise de 1929. Nos anos prévios ao golpe era um país que começava a acreditar em si mesmo. Quem toma com naturalidade agora a Copa do Mundo de 1958 não sabe o quanto ela foi importante para elevar a auto-estima dos brasileiros, que carregavam, desde o fatídico 16 de julho de 1950, o trauma do complexo de inferioridade.
Mas isso veio junto com a bossa nova, o cinema novo, o novo teatro brasileiro, um clima de expansão intelectual por grandes debates nacionais, pela articulação com grandes temas teóricos e culturais que começavam a preparar o clima da década de 1960.
O país não foi surpreendido pelo golpe. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial militares que tinham ido à Italia se articulavam estreitamente com os EUA. Na sua volta, liderados por Golbery do Couto e Silva e por Humberto Castelo Branco, fundaram a Escola Superior de Guerra e passaram, a partir dali, a pregar os fundamentos da Doutrina de Segurança Nacional – concepção norteamericana para a guerra fria. A Doutrina de Segurança Nacional cruzou a história brasileira ao longo de toda a década de 1950 até, depois de várias tentativas, desembocar no golpe de 1964 que, não por acaso, teve naqueles oficiais da FFAA seus principais líderes.
Durante a década de 1950, o Clube Militar foi o antro a partir do qual articulavam golpes contra o Getúlio – seu inimigo fundamental, pelo nacionalismo e por suas políticas populares e articulação com o movimento sindical. O suicídio do Getúlio brecou um golpe pronto e permitiu as eleições de 1955, em que novamente os golpistas foram derrotados.
Fizeram duas intentonas militares fracassadas contra JK e elegeram Jânio, com a velha e surrada – mas sempre sobrevivente, até hoje – bandeira da corrupção. Se frustraram com a renúncia deste e naquele momento tentaram novo golpe, valendo-se do vazio da presidência e da ausência do Jango, em viagem para a China. A mobilização popular e a atitude do Brizola de levantar em armas o Rio Grande do Sul na defesa da legalidade impediram e adiaram o golpe.
Mas os planos golpistas não se detiveram e acabaram desembocando em primeiro de abril de 1964 no golpe, que contou com amplo processo de mobilizações da classe média contra o governo, com participação ativa da IgrejaC atólica, da mídia, das entidades empresariais, que desembocou na ação da alta oficialidade das FFAA, que liquidou a democracia que o Brasil vinha construindo e instaurou o regime do terror que passou a vigorar.
Foi o momento mais grave de virada regressiva da história brasileira. Interrompeu-se o processo de democratização social, de afirmação econômica e política do pais, para impor a opressão econômica e politica, a subordinação externa, mediante uma ditadura brutal. O país, sob o comando dos militares, da Doutrina de Segurança Nacional, do grande empresariado nacional e internacional, do governo dos EUA, optou por um caminho que aprofundou suas desigualdades sociais, colocando o acento no mercado externo e na esfera de alto consumo do mercado, no arrocho salarial, na desnacionalização da economia e na opressão militar.
Completam-se 48 anos do golpe militar. Continua sendo hora de perguntarmos a todos: Onde você estava no momento mais grave de enfrentamento entre democracia e ditadura? Cada um, cada força política, cada empresário, cada órgão da imprensa, cada igreja, cada militar. Os temas continuam atuais: denuncismo moralista a serviço do enfraquecimento do Estado, abertura escancarada da economia, resistência às políticas sociais e aos direitos do povo, uso da religião contra a democracia republicana e o caráter laico do Estado, uso da mídia como força política da direita, etc. etc.
Que seja, uma semana de reflexão e de ação política. Que o governo finalmente nomeie os membros da Comissão da Verdade e que não passemos mais um primeiro de abril sem apurar tudo o que o regime de terror impôs pela força das botas e das baionetas ao país e que a democracia faça triunfar a verdade.
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FIM
quarta-feira, 28 de março de 2012
terça-feira, 27 de março de 2012
A questão capitalista
Por Wladimir Pomar
A atual crise mundial capitalista tem suscitado crescentes esperanças de que ela seja a fase terminal desse modo de produção e formação social. Não são poucos os socialistas, em especial europeus, que acham impossível que os países capitalistas a superem, e depositam suas esperanças nos novos movimentos sociais que emergiram nos Estados Unidos e na Europa.
Embora fosse ótimo que essas previsões se tornassem realidade, elas sofrem, em geral, do viés eurocentrista. Em geral, desprezam o fato de que a maior parte dos povos do mundo se encontra em países de desenvolvimento capitalista tardio, nos quais as forças produtivas ainda estão longe de esgotarem todas as possibilidades de evolução do modo de produção capitalista, seja sozinho, seja em combinação com outros modos de produção, inclusive estatais.
Temos assim, por um lado, novas oportunidades para as empresas capitalistas realizarem uma taxa média de lucro relativamente elevada, permitindo ao capitalismo, como sistema, uma sobrevida. Por outro, temos uma desindustrialização relativa dos países centrais, um aumento da concorrência inter-capitalista, e uma redução das transferências de riquezas que os países centrais arrancavam anteriormente dos países periféricos. Além disso, mais importante ainda para os socialistas, verificamos uma intensa recriação da classe operária nesses países, embora sejam poucos os analistas da esquerda que dêem a devida atenção a esse fenômeno.
Esse quadro geral e contraditório do desenvolvimento capitalista, seja em termos mundiais, seja em termos locais, impõe aos socialistas de cada país uma análise mais concreta das suas perspectivas. Eles não poderão contar, de imediato, com a incorporação das novas massas populacionais, oriundas tanto das zonas rurais, quanto das zonas urbanas favelizadas, à classe operária local. Ainda por algum tempo, como mostrou a experiência da industrialização no período da ditadura militar, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, essa nova classe operária se sentirá satisfeita com o desenvolvimento capitalista e com a possibilidade de receber salários e benefícios sociais.
Da mesma forma que a classe operária que surgiu no ABC naqueles anos, a nova classe operária da atualidade terá que aprender, com a própria vivência, o que é a exploração capitalista e como lutar contra ela. Para os socialistas brasileiros, por exemplo, essa situação talvez parecesse mais simples se eles não estivessem no governo. E, além disso, não fossem os principais incentivadores do próprio desenvolvimento capitalista, gerador de classe operária.
Esse fato novo parece ter virado um verdadeiro quebra-cabeça para uma série considerável de socialistas. Alguns acham que essa situação os colocou no céu desejado, já que melhoraram as taxas de emprego, a massa salarial, e outras condições sociais dos trabalhadores e camadas populares. Outros se sentem no pior dos mundos, consideram abominável que a esquerda no governo trate do desenvolvimento capitalista, e buscam uma nova teoria revolucionária que lhes possibilite mobilizar os movimentos sociais e empreender a revolução.
Ambos ignoram a nova classe operária. Não a consideram necessária para a teoria da revolução brasileira, e esquecem que essa classe é, do ponto de vista histórico e revolucionário, o produto mais importante do desenvolvimento capitalista das forças produtivas. Desse modo, a discussão sobre o desenvolvimento capitalista centra-se nas possibilidades do capitalismo poder promover ou não uma melhoria das condições de vida do povo, ser ou não dependente, segregar ou não as
camadas populares, contribuir ou não para a ampliação da democracia, e ser ou não um fator positivo para a soberania nacional.
Em nenhum país do mundo o capitalismo foi, por sua natureza, promotor do bem-estar, do desenvolvimento social e da democracia. Onde promoveu a independência tecnológica e financeira, e sua soberania nacional, foi para explorar outros países Todas as melhorias nas condições de vida e na ampliação dos direitos democráticos foram conquistas através de lutas, muitas delas sangrentas, da classe operária e demais camadas populares. As sociedades capitalistas de bem-estar social só surgiram após a revolução russa de 1917 e, mesmo assim, às custas da super-exploração dos povos dos países periféricos.
Nessas condições, em especial em países periféricos, como o Brasil ainda é, a questão capitalista precisa ser encarada, em primeiro lugar, como uma necessidade para a criação da classe que melhor tem condições de enfrentá-la. Se a esquerda socialista está no governo, e ainda não tem força para transformar o Estado, ela não pode abdicar da tarefa de apresar o desenvolvimento capitalista, por um lado garantindo que esse desenvolvimento forje uma classe operária massiva e, por outro, recriando e ampliando o setor estatal da economia, rompendo os oligopólios privados, incentivando a competição internacional, aprofundando a soberania nacional, impedindo a criminalização dos movimentos sociais e estimulando a participação popular no ampliação democrática.
Realizar essa tarefa não é fácil, principalmente se não há clareza sobre essas novas condições e desafios, seja porque são tomadas apenas em seu aspecto positivo, seja por serem consideradas incompatíveis com a natureza socialista. Se esse fosso de visões sobre a questão capitalista e, portanto, também sobre a questão socialista que surge dela, permanecer como na atualidade, talvez tenhamos que esperar que, como em 1978 no Brasil, a nova classe operária mostre a que veio, e realize uma nova unificação da esquerda. Ambos os lados talvez devessem analisar melhor nossa própria experiência histórica. Nas condições atuais, repetir os mesmos erros do passado já não será uma farsa, nem um drama.
http://pagina13.org.br/2012/03/a-questao-capitalista/
FIM
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